sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Reciclagem & Arte


Carta do Brasil, escrita para uma revista de Lisboa, Fevereiro de 2008

Tenho à minha frente, no fundo da sala, uma pequena multidão de figurinhas humanas, a maior das quais terá dois palmos de altura, obras do escultor Getúlio Amado. Construídas basicamente com resíduos plásticos e metálicos do lixo quotidiano, cada uma delas — entre as quais muitas mulheres, ou um cavaleiro em que a cabeça e pescoço da montada é um chuveiro vertical, ou um boi, com dois frascos de detergente justapostos, tubos eléctricos como chifres e pernas de pau —, é um prodígio de criatividade, um perfeito jogo surreal. A todas Getúlio conseguiu conferir uma expressão de perplexidade, esticada pela própria agregação inusitada e extremamente criativa, de materiais descartados por uma megapólis como o Rio de Janeiro, onde vive.
Marcos Cardoso, por seu lado, utilizando apenas embalagens de pacotes de bolachas e aperitivos da popular marca Piraquê (uma espécie de Nacional brasileira), criou uma dezena de réplicas de quadros ícones de Pablo Picasso. Na prestigiada Galeria Ana Maria Niemeyer, onde estas obras de grande formato estão expostas, o resultado é impactante. Com cerca de dois metros de lado, construídas numa retícula de pequenas bolsas onde se atafulham os ditos plásticos brilhantes das embalagens, quando as vemos de muito perto descobrem-se ainda, aqui ou ali, os códigos de barras e as letras grafadas do suporte em que foram construídas. O artista contratou durante meses uma equipa de colectores que lhe forneceu as muitas centenas de embalagens usadas coincidentes com a paleta cromática dos quadros do pintor catalão.
Zemog apresentou há tempos esculturas e quadros inteiramente produzidos com grande quantidade de caricas de refrigerantes, de várias cores, em trabalhos de evidente beleza formal, como aquela “serpente” roxa, contorcida numa caixa de acrílico transparente.

No país que fez de uma caixa de fósforos sobre a mesa um instrumento musical, a criatividade corre solta também quando se trata de dar destino às montanhas de dejectos da sociedade de consumo actual.
A colecta para reciclagem ou arte tornou-se um recurso para aqueles que pouco ou nada têm. Em vez de pontos ditos ecológicos transbordantes e infectos, de recolha incerta e destino sobretudo estatístico, uma enorme e colorida capacidade de (re)criação e de espanto. Brasil!!

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