sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Nemésio, carioca de aposento


Artigo publicado no Correio do Brasil, de Lisboa, em 2004

«Eu digo sempre que nós, portugueses, se não sabemos nada a fundo do Brasil é por pura preguiça»

Dois anos depois de publicar Festa Redonda, décimas e cantigas de terreiro, oferecidas ao povo da Ilha Terceira por Vitorino Nemésio, natural da mesma ilha, «o meu livro mais fundamente biográfico», Nemésio (1901-78) foi pela primeira vez ao Brasil. É, de facto, uma viagem muito tardia para quem desde a década de 30 dedicava uma atenção contínua a temas brasileiros. Mas é uma viagem que teve neste homem de 51 anos um impacto tão energético, que determinaria em larga medida o resto da sua vida e obra literária, tornando-o um caso raro da empatia entre os dois países. Diria mesmo, um caso raro dessa empatia a que a variante «açorianidade» acrescentou tonalidades específicas, como António Valdemar não deixaria de sublinhar.
O contexto da viagem prometia pouco. A inauguração do paquete Vera Cruz (!), trinta anos após a travessia aérea de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, no hidroavião Lusitânia, foi o pretexto político para uma expedição de intelectuais, em favor dum luso-tropicalismo eufórico, mas todo ele cenário de papelão, um género do especial agrado de António de Oliveira Salazar desde a Exposição de 1940. Fosse como fosse, aquela insustentável retórica paternalista, que a história diplomática esticou até ao meio da década de 60, jamais se poderia contrapor à notória influência esquerdista de Jorge Amado, Cândido Portinari e Óscar Niemeyer sobre escritores, pintores e arquitectos portugueses, numa época que ainda ficaria marcada pelo exílio brasileiro de grandes figuras nacionais como Jorge de Sena, Agostinho da Silva, Adolfo Casais Monteiro, Jaime Cortesão, sem esquecer o promissor jornalista Victor da Cunha Rêgo ou Maria Archer. José Cardoso Pires, auto-exilado prevenido (1957), revelaria mais tarde que foi a Senhor, uma inovadora revista carioca em que colaborou (sob um pseudónimo ainda hoje secreto), a inspirá-lo para o novíssimo e celebrado Almanaque lisboeta. Gilberto Freyre bem podia interpretar inovadoramente o passado colonial. Todos os outros criavam uma pujante modernidade, e isso fazia uma diferença abismal. Creio que a amplitude desta cisão ainda hoje não foi compreendida, ou terá sido esquecida, o que dá no mesmo.
O insólito sotaque açoriano do autor de Mau Tempo No Canal pode ter gerado algumas perplexidades locais – Heitor Martins admitiria, com graça, que entrou numa sala para saber mais sobre Alexandre Herculano e saiu, ao final, de «uma lição de dialectologia portuguesa» –, mas Vitorino Nemésio, impressionante tombo de cultura e de memórias, sabia que o Brasil tinha sido um fecundo hinterland dos Açores, como o fora do próprio continente. Verdadeiros prodígios haviam sido realizados naquelas paragens tropicais por muitos ilhéus em séculos passados. Maria Leopoldina, a mãe do imenso Machado de Assis, era micaelense, e os avós de Cecília Meirelles, poetisa em destaque, também. Até as populares festividades do Divino tinham vindo de lá. Havia emigrantes açoreanos onde quer que se fosse, do norte ao sul. No Rio, cenário paradisíaco, Nemésio buscou e abraçou amigos de infância, com quem conversou, cantou e tocou violão até ao amanhecer. Nas cidades históricas de Minas Gerais, daria de caras com outras e intensas familiaridades, as do Barroco português transplantado e ampliado. Como testemunhou a Maria de Lourdes Belchior, mais do que típica experiência de reconhecimento, o périplo de 1952 foi vivido como «experiência mística». Salvador da Bahia simplesmente deixara-o «enfeitiçado» (sic) e como, por vezes, a felicidade convida ao delírio, foi-lhe fácil pensar o Atlântico como «um grande lago luso-brasileiro», um lago que a desilusão a golpes fundos depois secou.
Nemésio voltaria dali a dois anos, para as comemorações dos quatrocentos anos da cidade de São Paulo, para as quais escreveria, a pedido, um extenso ensaio histórico «conexo», centrado nos grandes jesuítas, Manuel da Nóbrega em particular. Depois desta, ao longo dos restantes vinte e poucos anos, foram mais sete estadias prolongadas, para o habitual circuito de lições e conferências académicas ao qual se juntam alguns dias para devaneios de andarilho e de tertúlias, da protocolar Academia das Letras à mais recôndita e desconfortável Amazónia. Dois livros de crónicas de viagens – O Mistério de Ouro Preto e Outros Caminhos e Caatinga e Terra Caída. Viagens no Nordeste e no Amazonas, de 1954 e 1968 (reeditados pela INCM) – são ainda hoje uma belíssima introdução ao Brasil, ou a um certo Brasil, que não se deve ignorar. Para Nemésio, escritor «de ouvido», mestre da língua e dicionarista, as obras-primas de Euclides da Cunha, José Lins do Rêgo ou João Guimarães Rosa estavam pejadas, além de densas experiências humanas, dos encantos da língua comum recriada por uma literatura de afirmação regionalista com cotação internacional, ao mesmo tempo que Mau Tempo no Canal tinha assinaláveis parentescos com um marco da literatura gaúcha, O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, publicado dois anos depois. Amigo de Graciliano Ramos, o seu discípulo predilecto [Fernando Cristóvão] haveria de escrever sobre o autor de Vidas Secas um clássico várias vezes reeditado. Mas foi com Poesia – a expressão literária e humana por excelência – que Vitorino Nemésio criou laços indeléveis com a terra e as suas gentes. «Ode ao Rio» é um longo poema escrito na praia do Flamengo, em Agosto de 1965, que Aurélio Buarque de Holanda leu na Academia Brasileira das Letras, ainda fresco de tinta. Logo nas epígrafes e nas dedicatórias, que juntam Machado de Assis a uma cantiga do Norte de Portugal, Jaime Cortesão a Cecília Meirelles e António Nobre, são evidentes os sinais duma vontade de empatia, que o poema amplia, adoptando nos seus versos expressões e modo de dizeres puramente locais. Mas nada suplanta «Violão de Morro» (1968), uma glosa divertida da literatura de cordel brasileira («tem xácara, tem samba, tem Farsa Dramática»), com gravuras típicas das folhas populares, que ele fez em edição de autor de reduzida tiragem, e que a sra. directora deste jornal comprou há dias, por sugestão muito amiga.

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