sábado, 9 de fevereiro de 2008

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Reciclagem & Arte


Carta do Brasil, escrita para uma revista de Lisboa, Fevereiro de 2008

Tenho à minha frente, no fundo da sala, uma pequena multidão de figurinhas humanas, a maior das quais terá dois palmos de altura, obras do escultor Getúlio Amado. Construídas basicamente com resíduos plásticos e metálicos do lixo quotidiano, cada uma delas — entre as quais muitas mulheres, ou um cavaleiro em que a cabeça e pescoço da montada é um chuveiro vertical, ou um boi, com dois frascos de detergente justapostos, tubos eléctricos como chifres e pernas de pau —, é um prodígio de criatividade, um perfeito jogo surreal. A todas Getúlio conseguiu conferir uma expressão de perplexidade, esticada pela própria agregação inusitada e extremamente criativa, de materiais descartados por uma megapólis como o Rio de Janeiro, onde vive.
Marcos Cardoso, por seu lado, utilizando apenas embalagens de pacotes de bolachas e aperitivos da popular marca Piraquê (uma espécie de Nacional brasileira), criou uma dezena de réplicas de quadros ícones de Pablo Picasso. Na prestigiada Galeria Ana Maria Niemeyer, onde estas obras de grande formato estão expostas, o resultado é impactante. Com cerca de dois metros de lado, construídas numa retícula de pequenas bolsas onde se atafulham os ditos plásticos brilhantes das embalagens, quando as vemos de muito perto descobrem-se ainda, aqui ou ali, os códigos de barras e as letras grafadas do suporte em que foram construídas. O artista contratou durante meses uma equipa de colectores que lhe forneceu as muitas centenas de embalagens usadas coincidentes com a paleta cromática dos quadros do pintor catalão.
Zemog apresentou há tempos esculturas e quadros inteiramente produzidos com grande quantidade de caricas de refrigerantes, de várias cores, em trabalhos de evidente beleza formal, como aquela “serpente” roxa, contorcida numa caixa de acrílico transparente.

No país que fez de uma caixa de fósforos sobre a mesa um instrumento musical, a criatividade corre solta também quando se trata de dar destino às montanhas de dejectos da sociedade de consumo actual.
A colecta para reciclagem ou arte tornou-se um recurso para aqueles que pouco ou nada têm. Em vez de pontos ditos ecológicos transbordantes e infectos, de recolha incerta e destino sobretudo estatístico, uma enorme e colorida capacidade de (re)criação e de espanto. Brasil!!

Nemésio, carioca de aposento


Artigo publicado no Correio do Brasil, de Lisboa, em 2004

«Eu digo sempre que nós, portugueses, se não sabemos nada a fundo do Brasil é por pura preguiça»

Dois anos depois de publicar Festa Redonda, décimas e cantigas de terreiro, oferecidas ao povo da Ilha Terceira por Vitorino Nemésio, natural da mesma ilha, «o meu livro mais fundamente biográfico», Nemésio (1901-78) foi pela primeira vez ao Brasil. É, de facto, uma viagem muito tardia para quem desde a década de 30 dedicava uma atenção contínua a temas brasileiros. Mas é uma viagem que teve neste homem de 51 anos um impacto tão energético, que determinaria em larga medida o resto da sua vida e obra literária, tornando-o um caso raro da empatia entre os dois países. Diria mesmo, um caso raro dessa empatia a que a variante «açorianidade» acrescentou tonalidades específicas, como António Valdemar não deixaria de sublinhar.
O contexto da viagem prometia pouco. A inauguração do paquete Vera Cruz (!), trinta anos após a travessia aérea de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, no hidroavião Lusitânia, foi o pretexto político para uma expedição de intelectuais, em favor dum luso-tropicalismo eufórico, mas todo ele cenário de papelão, um género do especial agrado de António de Oliveira Salazar desde a Exposição de 1940. Fosse como fosse, aquela insustentável retórica paternalista, que a história diplomática esticou até ao meio da década de 60, jamais se poderia contrapor à notória influência esquerdista de Jorge Amado, Cândido Portinari e Óscar Niemeyer sobre escritores, pintores e arquitectos portugueses, numa época que ainda ficaria marcada pelo exílio brasileiro de grandes figuras nacionais como Jorge de Sena, Agostinho da Silva, Adolfo Casais Monteiro, Jaime Cortesão, sem esquecer o promissor jornalista Victor da Cunha Rêgo ou Maria Archer. José Cardoso Pires, auto-exilado prevenido (1957), revelaria mais tarde que foi a Senhor, uma inovadora revista carioca em que colaborou (sob um pseudónimo ainda hoje secreto), a inspirá-lo para o novíssimo e celebrado Almanaque lisboeta. Gilberto Freyre bem podia interpretar inovadoramente o passado colonial. Todos os outros criavam uma pujante modernidade, e isso fazia uma diferença abismal. Creio que a amplitude desta cisão ainda hoje não foi compreendida, ou terá sido esquecida, o que dá no mesmo.
O insólito sotaque açoriano do autor de Mau Tempo No Canal pode ter gerado algumas perplexidades locais – Heitor Martins admitiria, com graça, que entrou numa sala para saber mais sobre Alexandre Herculano e saiu, ao final, de «uma lição de dialectologia portuguesa» –, mas Vitorino Nemésio, impressionante tombo de cultura e de memórias, sabia que o Brasil tinha sido um fecundo hinterland dos Açores, como o fora do próprio continente. Verdadeiros prodígios haviam sido realizados naquelas paragens tropicais por muitos ilhéus em séculos passados. Maria Leopoldina, a mãe do imenso Machado de Assis, era micaelense, e os avós de Cecília Meirelles, poetisa em destaque, também. Até as populares festividades do Divino tinham vindo de lá. Havia emigrantes açoreanos onde quer que se fosse, do norte ao sul. No Rio, cenário paradisíaco, Nemésio buscou e abraçou amigos de infância, com quem conversou, cantou e tocou violão até ao amanhecer. Nas cidades históricas de Minas Gerais, daria de caras com outras e intensas familiaridades, as do Barroco português transplantado e ampliado. Como testemunhou a Maria de Lourdes Belchior, mais do que típica experiência de reconhecimento, o périplo de 1952 foi vivido como «experiência mística». Salvador da Bahia simplesmente deixara-o «enfeitiçado» (sic) e como, por vezes, a felicidade convida ao delírio, foi-lhe fácil pensar o Atlântico como «um grande lago luso-brasileiro», um lago que a desilusão a golpes fundos depois secou.
Nemésio voltaria dali a dois anos, para as comemorações dos quatrocentos anos da cidade de São Paulo, para as quais escreveria, a pedido, um extenso ensaio histórico «conexo», centrado nos grandes jesuítas, Manuel da Nóbrega em particular. Depois desta, ao longo dos restantes vinte e poucos anos, foram mais sete estadias prolongadas, para o habitual circuito de lições e conferências académicas ao qual se juntam alguns dias para devaneios de andarilho e de tertúlias, da protocolar Academia das Letras à mais recôndita e desconfortável Amazónia. Dois livros de crónicas de viagens – O Mistério de Ouro Preto e Outros Caminhos e Caatinga e Terra Caída. Viagens no Nordeste e no Amazonas, de 1954 e 1968 (reeditados pela INCM) – são ainda hoje uma belíssima introdução ao Brasil, ou a um certo Brasil, que não se deve ignorar. Para Nemésio, escritor «de ouvido», mestre da língua e dicionarista, as obras-primas de Euclides da Cunha, José Lins do Rêgo ou João Guimarães Rosa estavam pejadas, além de densas experiências humanas, dos encantos da língua comum recriada por uma literatura de afirmação regionalista com cotação internacional, ao mesmo tempo que Mau Tempo no Canal tinha assinaláveis parentescos com um marco da literatura gaúcha, O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, publicado dois anos depois. Amigo de Graciliano Ramos, o seu discípulo predilecto [Fernando Cristóvão] haveria de escrever sobre o autor de Vidas Secas um clássico várias vezes reeditado. Mas foi com Poesia – a expressão literária e humana por excelência – que Vitorino Nemésio criou laços indeléveis com a terra e as suas gentes. «Ode ao Rio» é um longo poema escrito na praia do Flamengo, em Agosto de 1965, que Aurélio Buarque de Holanda leu na Academia Brasileira das Letras, ainda fresco de tinta. Logo nas epígrafes e nas dedicatórias, que juntam Machado de Assis a uma cantiga do Norte de Portugal, Jaime Cortesão a Cecília Meirelles e António Nobre, são evidentes os sinais duma vontade de empatia, que o poema amplia, adoptando nos seus versos expressões e modo de dizeres puramente locais. Mas nada suplanta «Violão de Morro» (1968), uma glosa divertida da literatura de cordel brasileira («tem xácara, tem samba, tem Farsa Dramática»), com gravuras típicas das folhas populares, que ele fez em edição de autor de reduzida tiragem, e que a sra. directora deste jornal comprou há dias, por sugestão muito amiga.

D. Carlos I: frascos e caixas de charutos


Sobre «Rei Dom Carlos. Campanhas Oceanográficas», de Cândida Macedo
Publicado em «O Independente», 21 Março 1997

Severamente fustigado por jacobinos e republicanos tresloucados, de Leal da Câmara e Gomes Leal ao Costa do regicídio, entre muitos, o rei D. Carlos [1863-1908] está a ser objecto de um nítido processo de identificação (depois do ornitólogo, o pintor, hoje o oceanógrafo e em breve o diplomata) que o transporta para o justo reconhecimento da sua personalidade política e artística.
Com o muito simpático patrocínio da Shell Portuguesa, este álbum da Inapa dá-nos conta das suas pesquisas oceanográficas a bordo das quatro versões do iate «Amélia», entre 1896 e 1907, com as quais quis realizar «o estudo metódico e comprovado do mar que bate as nossas costas». Influenciado pelo príncipe e amigo Alberto do Mónaco, apoiado no naturalista nova-iorquino Albert Girard, que com ele deambulou entre Cascais, Tróia e a ria de Faro, o Rei realizou precursores levantamentos zoológicos e macalógicos, que com especial diligência fez expor cá e lá fora e publicar em catálogos. Além de centenas de frascos dos mais variados conteúdos e dimensões, guardou algumas conchas em caixas dos seus inseparáveis charutos e fez empalhar aves e peixes, um espólio que a república com fúria inconoclástica destroçou e reduziu, como Girard denunciaria depois, mas hoje é silenciado.
Versão impressa do que podemos ver no museu do Dafundo, a edição é enfraquecida pelo paupérrimo grafismo do sr. João Paulo Abreu e Lima, cego aos progressos técnicos das artes gráficas actuais, e que nos rouba o prazer de admirar em casa a beleza de «Crassostrea angulata», «Chlamys glaber», «Fusinus rostratus», «Epitoonium clatbru» e «Chaetoplenura angulata».

Rio de Janeiro, Fevereiro de 2008


Além de medeirosrosa@multiply.com, passo a escrever também aqui.

Obrigado a todos aqueles que lerem e comentem.